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Um passo na direção do tempo que não morrera e um beijo ressuscitado
nos lábios que os lábios mais abjetos do inferno evitou!...
…Ardendo em convulsivas combustões de ódio,
Sentiu o prazer da repulsa e gritou!...
Uma profunda repugnância cáustica de sódio,
Escorreu sua alma dentro de quem a profanou,
Um pó muito fino que a brancura do tempo gelou,
Reencetava na ampulheta a memória do episódio,
E todo o tempo de que sempre fugira a alcançou!...
Quando o professor lhe fixara, por momentos, o olhar que a acordou para
o pesadelo sentido, voltou todo o ódio carregado de desespero. Dentro de si,
seu coração congelou e o fluxo sanguíneo fora interrompido por breves momentos,
embranquecendo-a, como se um lençol de neve a cobrisse dos pés à cabeça!... Uma
explosão dentro de si e seu sangue ferveu tomando-a num esmagador calor
insuportável. Deslizou instintivamente, contornando a esquina da arca e entre
alguns passos laterais, sentiu a parede do gimnodesportivo colar-se-lhe às
costas; até à porta de saída, foi um pequeno salto para a velocidade do
medo!... Não evitou as lágrimas que, silenciosas, beijavam seu rosto arroxeado.
Lembrou-se da roupa, no balneário. Enquanto pensava numa maneira de lá voltar,
sem ser vista pelo professor, reparou no silêncio do pavilhão; a aula, por
alguma razão terminara mais cedo!... Havia uma entrada para o corredor que dava
acesso aos balneários mas só abria por dentro, por causa de um problema com a
fechadura e a entrada pelo polivalente desportivo, de onde há poucos minutos
fugira!... Escondeu-se num recanto do hall, aguardando a melhor oportunidade
para ir buscar sua roupa. Lembrou-se que as aulas terminavam às 18:30, mas os
funcionários auxiliares só costumavam sair uma hora depois. Ainda que perdesse
o autocarro que a levava para a sua terra, os pais não se importariam que
alugasse um táxi. Esperou que todos saíssem sem a ver. Não queria ter de estar
a dar explicações pela sua estranha saída no jogo de handebol. Depois de todos
os seus colegas terem saído, aguardava ansiosamente a saída do professor.
Minutos de eternidade angustiante. Os minutos iam passando e os nervos foram
tomando-a até ao enjoo que lhe arrancou um vômito lá das entranhas. Correu para
a casa de banho ali próxima, contendo um líquido azedo em sua boca. Enfiou a cabeça
na sanita para vomitar nervos e dores de estômago!...
Lavou a boca e espreitou do medo de alguém!...
Frios silêncios escondidos na passagem de corredores,
Procuram sorrisos escondidos no rosto de ninguém,
Olhos angustiados vão ao encontro do que por aí vem,
Desconhecendo o Destino dos mais íntimos interiores,
Retalhados por afiadas facas de ódios e frios desamores,
E o Amor que ao encontro do Destino não se detém,
Flutuando serenamente sobre sigilosos rumores,
Fechados na alma violada onde a dor se mantém!...
Os desencontros são caminhos diversos jogados ao acaso pelas mãos
arbitrárias do Destino envolto em inocência, num tabuleiro onde a culpa se
divide entre homens e mulheres, entre a culpa dos inocentes e a inocência dos
culpados. Às vezes, o silêncio é o destino mais provável dos mais reprováveis
destinos e o princípio de algo espreita sempre do alto qualquer de um fim
incerto!... O gelo faz parte do jogo e o amor, para uns, justifica a vontade do
vencedor nunca admitir que jamais vencerá, mesmo que a vitória dependa de quem nunca
pensou o sentimento como uma competição de correspondência a conquistar,
partindo do campo da derrota!...
Do gelo que se foi aguçando no escorrer da água,
Cresceu a vingança afiada no inferno gelado da mágoa!...
No fundo de um corredor que os olhos não vêm, ouve-se o varrer abafado,
pela distância, de uma vassoura em tempos de poupança!... O silêncio percorre
todos os corredores gravados na memória, enquanto um intervalo de tempo se
esgueirou atrás do vómito regurgitado pelo medo!...
Em bicos de pés, fez-se sombra do passado para conseguir suas roupas no
presente. Enquanto corria na direção dos vestiários, o som de múltiplas bolas
ecoavam em sua cabeça, como se fosse apanhada entre duas explosões. Sempre
correndo. Lembrou-se, a dado passo, que já se esquecera de correr; no handebol,
aquilo não era correr, por falta de interesse e de queda e por cada queda a
cada passo!...
Pegou sua roupa do armário aberto e continuou a correr. Não voltou por onde
veio e, instintivamente, entrou no gimnodesportivo; era só atravessá-lo e
respiraria de alívio!...
À altura de sua ansiedade,
Abrindo a porta à realidade,
Frio de gelo o choque com a claridade,
Tão fria quanto a mão gelada,
Que apertavam os pulsos da desgraçada,
E ali ficou por momentos,
Estátua de gelo feita de congelados pensamentos,
Até encontrar o oxigênio e a combustão adequada,
Que incendiou seu coração com mil fundamentos,
E o sorriso fingido de criança encurralada… renasceu!..
-Desculpa, pensei que era um ladrão; dizem que andam por aí a assaltar
escolas.
-Senti-me mal e fui à casa de banho. O professor tem as mãos tão
frias!!...
-Mão frias coração quente…
-Já estou atrasada; não quero perder o autocarro. Com licença.
Enquanto mantinha o diálogo possível, escapuliu-se subtilmente até ter
o campo aberto. A porta de saída estava a pouco mais de cinquenta metros.
-Se quiseres eu levo-te a tua casa no meu carro.
-Não, não é preciso, vou chegar a tempo.
Ela olhou a porta, lá no fundo de si, no fundo de tudo!...
Há portas que ninguém quer ver e outras que nos escancaram toda a
verdade, por onde muito poucos querem entrar e, dos que entraram, poucos
saíram. Mesmo esses, continuam a ver portas abertas lá num fundo inatingível de
tudo, as mesmas que se fecham atrás de si, empurrando-os para o meio de nada,
onde um espaço vazio se faz glaciar!... Há saídas que são apenas uma entrada
para o que os olhos não querem ver. Há sempre uma arca congeladora no canto de
cada um, variando no tamanho e intensidade do que congela. Por enquanto, a
dela, era microscópica e envolvida por fogo intenso alimentado por raiva,
repulsa e muito medo!... Mas, num ápice, tudo pode mudar.
Um corpo conhecido que fora seu,
Repousado sem vida a um canto,
Olhava da morte que a vida lhe deu,
A morte que agora congelava o pranto,
Das lágrimas congeladas de espanto,
Retidas na morte que o Destino teceu!...
Ajoelhada, contemplou piedosa, seu amor, fonte de sangue jorrado do
coração da nascente, ainda um tanto de nada quente!... Um rio se alargava e se
tornava cada vez mais claro como água.
Ela olhou a arca, ambas frias, mais geladas do que nunca, congeladas,
uma apenas por dentro e outra apenas no coração e por fora do olhar cortante.
Abriu a porta da congeladora horizontal e viu…
Quão gélidas podem ser as noites insensíveis,
Que encobrem sua negra sombra diabólica,
Escorrendo da lâmina de geladas facas invisíveis,
Feridas de morte por tanto ódio terrível!...
Dois corpos frios, declives rochosos, por onde escorre a
água de um Inverno seco, agora sem estalactites!...
Olhou o relógio. Perdera o autocarro que a levaria para a sua terra. Os
pais não se importavam que ela alugasse um táxi.
-Já sim, senhora Maria!...
-Dê cá um beijo, menina!...
A senhora Maria, que arrastava a vassoura, pegou-lhe nas nãos enquanto
lhe dava dois beijos de despedida e lhe desejava um feliz fim-de-semana.
-Tem as mãos tão frias, menina!!...
-Mãos frias, coração quente...
-Amor para sempre,- completou dona Maria!...
E dois cadáveres unidos pela morte,
Viveram um amor de calor diferente,
Ao lado de um corpo ainda quente,
Um corpo já frio adivinha-lhe a sorte,
Vai derretendo o gelo de um golpe forte,
De dois corações jorra abundantemente,
Água do crime e sangue que não mente!...
Com afiadas estalactites de dor,
Gelo de Inverno acabou com o Amor!...