.
.
.
…O pequeno bilhete vincado em partes
multiplicadas, fora reduzido a um pequeno selo branco que escondia na
perfeição, um beijo, um abraço, talvez todo o amor do mundo concentrado naquele
discreto espaço que deslizou de mão em mão, até ao outro lado de um mundo muito
particular, o seu em que o seu era dela e o dela jurara para sempre ser dele.
Ainda pensou fazer um pequeno avião de papel; sobrevoaria as cabeças de todos
os colegas de turma, arriscava uma gincana entre as longas e afiadas
estalactites de gelo que pendiam do vão das rochas naquele Inverno muito seco e
atrevia-se, corajosamente, a dar duas voltas à cabeça do professor, antes do
pousar suavemente nas mãos mais delicadas. Sorriu, largou os comandos
ultraleves do pensamento e confiou a mensagem ao bilhete onde um pequeno poema,
quando fosse lido pela destinatária, daria asas à imaginação que nunca lhes
faltara. A cumplicidade fizera-lhes férteis, os muitos caminhos do amor sem fim
a explorar. Às vezes desmontavam a turma, colega por colega, amigo por amigo, e
baralhavam as peças como se nunca as tivessem visto e um dos dois escondia uma
delas, o delator ou professor, de preferência. Acabavam por derivar para a
montagem do puzzle, de olhos fechados, servindo-se apenas do tacto concentrando
todo o prazer na textura suave e apurada das pontas dos dedos e das impressões
nas mãos que levemente os guiavam até à inevitabilidade merecida da sensação e
sabor de duas línguas que se tocavam em pontas, antecedidas por um sedoso toque
de lábios leves e quentes!...
O bilhete, ao fim daquela tarde
invernia, fosforescia por cada mão que passava e se algumas serviam de sombra
ao brilho estonteante, outras quase sucumbiam à tentação de contar os vincos das
dobragens e seus segredos. Havia sorrisos cúmplices!... Olhando as estalactites
da perspectiva do bilhete, brilhava uma sensação atrevida na pontinha mais
afiada do escorrer lento, pela falta de água naquele inverno muito frio… um
piscar cintilante, como se, também esse pedaço de gelo se derretesse por eles e
lhes piscasse um olhar conivente!... E tudo se iluminou no olhar anoitecido que
se fechou sobre o congelamento...
Frio desesperado a congelar o
pensamento,
E todo o calor do inferno que vira
nascer,
Uma centelha rendida ao momento,
De sentir na carne o desejo de arder,
Naquela fogueira de ansiado prazer,
Onde o fogo se congelava lento,
Prolongando o Inverno… como se algo congelasse
na memória um sentimento incandescente, capaz de cortar o vento mais arrepiante!...
E as arcas congeladoras davam sempre jeito.
Desde as almas rubras de quem se merece,
Ao desejo carnal das paixões
merecidas!...
Alguém leu a mensagem, sem que ele o
quisesse,
E clamou a intimidade apaixonada de
duas vidas:
“No frio de nossa noites mais
aborrecidas,
Dormirei por ti teu sono que me
adormece,
Serei teu gelo que derrete quando
acontece,
Seres o Sol de minhas noites
adormecidas,
Fogo de minhas confissões
correspondidas,
Confessando teu amor que em nós
cresce…
Como se as vezes do amor não fossem
repetidas,
E sempre pela primeira vez o amor se
fizesse!...”
Todos riram, uns por acharem ridículo o
conteúdo, outros porque a única coisa que os enchia era um riso de corações
vazios e todos riam porque o professor ria daqueles dois clássicos “nerds”. Alguns
congelaram de riso e uma gargalhada mais pungente abafou-se em silêncio,
cravada que fora pela mais sólida estalactite guardada na desdenhosa frieza do ciúme
mais impensável!... Porque há coisas que têm dessas coisas e outros mistérios
bem escondidos entre a diferença do que pode ser revelado e o que, por razões
fracas, prefere o segredo íntimo do medo por uma possível rejeição à frente dos
olhos de todos!... O riso, quanto mais divertido, mais humilha o alvo.
Ele há coisas surpreendentes e como se
de um filme já muito gasto de amor se tratasse, o bilhete foi devolvido ao
remetente e entregue entre os lábios de um longo beijo, ali mesmo, à frente de
todos, como tantas vezes, enquanto o resto da sólida e afiada água escorrida se
derretia no final do Inverno!... Os aplausos cobriram-nos e ele lá a cobriria
mais tarde!... Um final já muito batido de um filme para adolescentes. A noite
fazer-se-ia de tristeza melancólica evoluindo para uma raiva impassível de
efervescência metabólica. Um calor que chegava a ser desprezível… a coberto da noite!...
Gélida é a noite insensível,
Que encobre sua sombra diabólica,
Escorrendo da lâmina de uma faca
invisível,
Fria, hirta e afiada…
Ferida negra de ódio terrível!...
Ninguém se lembrou da Primavera que começara
e já a universidade espreitava os melhores finalistas, depois de doze anos a
moldar-lhes o carácter e o espírito!... Sentia-a, cada um à sua maneira que era
comum a todos. As flores, com todas as suas cores, passavam desapercebidas e
algumas só existiam para ser esmagadas por corpos que se rebolavam sobre elas,
em desfloramentos incontidos, porque há uma primeira vez para tudo e, embora as
flores não crescessem na regra, os apetites adolescentes não faziam parte de qualquer
excepção!...
Em diversos casos, o amor costuma
começar no fim de cada ciclo e quando a Primavera é Primavera, a adolescência
desabrocha e floresce do coração e desejo quase incontrolável das mais
estranhas criaturas, hipnotizadas por toda a natureza… e tudo é beleza
irresistível a exalar os ácidos estonteantes da frescura do sexo fresco que
arde na denúncia de oferecer-se ao apaziguamento!...
No fim da tarde, o gimnodesportivo
tornava-se um espaço um tanto sombrio!... Sexta-feira, último dia da semana e
última aula do dia; cansativo ao entrar e mais ainda ao sair!... O andebol era-lhe extenuante e ela não tinha grande inclinação para levar com as bolas em tudo que
era corpo. Sorria ao pensar noutras bolas a baterem-lhe noutras partes e
ninguém lhe lia os pensamentos, o que a fazia sorrir mais ainda. Sentiu falta do
seu diamante, como ela o chamava, por o ter como puro e duro. Riam-se com a
cumplicidade de sempre quando ela lhe sussurrava uma pontinha de língua, quente
e húmida, no ouvido, arrepiando-o!...
Naquele dia sairia mais cedo para uma
consulta no dentista e regressaria antes do fim da última aula, para a levar à
estação de camionagem. Ela vivia noutra cidade. Aproximavam-se dois longos dias
de fim-de-semana, longe um do outro. Dois dias sem beijos nem apaziguamentos!...
Era decepcionante a falta de aptidão para a educação
física, mas o sonho de entrar em medicina e vir a ser uma médica reconhecida,
enchia-a de coragem. Um dia, aquelas correrias disciplinadas talvez deixassem de contar para a média final,
pensou enquanto, exausta, se chegou até á arca frigorífica que sempre
estivera lá no fundo, a um canto do pavilhão. Todos os professores de educação
física, relutantes no princípio, lá acabavam por concordar que dava muito jeito
ter gelo sempre à mão, por causa de contusões e outros traumatismos do género.
E havia sempre água fresca para arrefecer alguns ânimos mais exaltados nas
derrotas ou pela sede de vitórias. Um problema qualquer fazia com que
congelasse muito rápido, qualquer líquido que lá guardassem, por isso, um dos
alunos era sempre destacado para controlar o tempo, não fossem as garrafas de
água congelar!... Por assim dizer, a frescura e o calor eram seu suporte, como se...
Dois corações e uma só batida!...
Por cada batimento mais forte,
Debate-se com o bater da sorte,
No desencontro da flor abatida,
Bate mais forte na flor da vida,
Que vai ao encontro da morte!...
.
.
.
(Continua...)