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Depois do sonho que o atacava,
Abeirava-se da velha cama sonolenta,
E deparava-se com o que sempre sonhava;
Ali estavam eles sobre a bota que
descansava,
Estendidos no sono de mais uma volta
truculenta,
Mal desatados por mais uma noite de
tormenta,
Nas voltas solitárias que na noite o sobressaltava!...
Sentado à beira do abismo de estrito uso
pessoal,
De braços atados pelo nó cego da cegueira
da sorte,
Contemplava seus pés de um despido branco
forte,
Pendentes de uma crua indiferença quase
vegetal,
A crescer no olhar vazio de um pálido vazio
mental,
Já sem as lembranças vivas da vida nem da morte!...
Já sem as lembranças vivas da vida nem da morte!...
Escolheu vinte dias em que ficou descalço
no frio,
Entrou em dezanove abismos e saiu por
cada ilhó,
Passou por todos eles como atacador de
ponta só,
Até encontrar seu par atacador em igual
desvario,
Uniram-se pelas botas num abraço de
amorfo nó,
Fazendo-se ímpar atacador de fatal nó corredio!...
Haurido pelo olho trespassado dos velhos ilhós,
Debruava buracos abertos ao silêncio das
dores,
Cegos nós na garganta estrangulavam-lhe a
voz,
Como quem ata olhos de solidão de homens
sós,
Ao silêncio de uma bota desatada por atacadores!...
Vinte ilhós e outros tantos longos dias
depois,
Puxou tenazmente as pontas dos fortes
atacadores,
Cada um apertou sua bota cheia de vidas
anteriores,
…e
partiram os dois!....
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Imaginação, sensibilidade e propriedade poética fazem de “Atacadores” um poema social onde objetos inanimados ganham vida e sentimentos. O cenário de antíteses que constrói é desolador. As certezas estão fragmentadas, a memória é a geografia de um abismo, em par. E as asas presas por uma corrente é a própria metaforização do voo quanto à incerteza do percurso. Uma visão inusitada de um mundo que estabelece uma relação com a memória do passado escrevendo o presente depositando no futuro a angústia, a preocupação e o abandono. Condenado à solidão, ou à prisão da memória. Ou das lembranças.
ResponderEliminarA imagem do anjo, e tão diferente das mulheres que estão habituadas a constar na produção dos wallpapers, nu e acorrentando, antecedendo à última estrofe, que não é de libertação, mas de puxão, ou de um arrancão, desconcerta toda a dinâmica do Poema. Como se a vida, ou algumas vidas, dependessem daquele 'tranco', ou arranque, para se firmar como pessoa, ou humano.
Mas como dizer isto sem enaltecer que a poesia se superou pela imaginação, dessa vez, (e só dessa vez?! não!).
Não sei como. Não sei como traduzir o que estou sentindo. Não sei como dizer que a poesia d’Alma não é só Alma, é também corpo, pele e sangue. Mãos. Coração. Pernas e pés. Escrever um poema e comparar a vida e o sofrimento, memória, opressão e liberdade, representando a submissão e a ausência de perspectiva de melhorias à situação existencial, a um cadarço, ou a um simples cadarço, ou "Atacadores", é mais que inovar ou ousar, é apostar na grandeza inquestionável da sua própria Obra.
E ganhar sempre.
Mas ainda não sei como dizer isto. Ou não aprendi tudo que deveria. E de repente me sinto tal como aquele anjo, ter asas e não poder voar, e a única diferença é que eu sei onde quero chegar.
Desta forma, permanece registrado, ainda que num poema, os passos desses desventurados calçados, ou pés, que amarrados, ainda caminham, ou voam, rumo a um futuro duvidoso.
Bom domingo A.
Parabéns pela análise!... Não se pedia melhor interpretação!...
ResponderEliminarBom Domingo
Abraço