quarta-feira, 25 de maio de 2011

Medo

.
.
.

Tenho uma estranha história para lhes contar,
Sobre uma figura de nome Zé povinho,
-Talvez já tenham ouvido falar!...
Certo dia ao ver o trabalho passar,
Vi o “queres fiado” muito sozinho,
Com seu braço caído em desalinho,
Sendo espancado por quem o andava a roubar!...

Não me contendo…
Nem pestanejei!...
“Enquanto a ti te vai doendo,
E o verdugo contigo se vai entretendo,
Folgo eu”, pensei!...
Ficando calado e quietinho,
Vi o desgraçado do Povinho,
Levar tantas que nem vos direi,
Só sei,
Que, já sem reacção,
O Zé abriu um olho todo ceguinho,
Para ver alguém muito arranjadinho,
Oferecendo-lhe sua muito limpa mão;
-Vem, amigo Zé, vou dar-te riqueza e carinho!...
Continuando a ser amassado,
Pelo Diabo que o continuava a amassar;
 Então, traído por um lampejo alienado,
Foi, por uma réstia de hesitação, assaltado,
E, num sobressalto, ficou a meio caminho,
De ser libertado!...
Mas, como há sempre um "mas",
 Nas certezas  dos Zés,
Para não variar,
Até o medo o resolveu assaltar,
Tolhendo-lhe os pés!...
Aconteceu o seguinte revés;
Desconfiando de não sobrar,
Quem não o quisesse roubar,
Ao invés,
Em vez da fuga de lés a lés,
Que até do poderia safar,
Disse baixinho para com a sua burrice:
-E se aquele candidato à fonte me quiser julgar?!...
Ainda me lembro do que este me disse,
Será que, se eu fugisse,
Seria capaz de me deitar,
E adormecer sem medo de respirar,
A incolor cor do democrático ar?!...
E lá voltou o seu medo,
A ser assaltado por mais medo,
Que não o deixava enfrentar,
Os medos do seu manipulado degredo!...
Entre um lés de dignidade,
E o outro lés de carneiro dependente do cajado,
Arrepiou caminho preferindo continuar a ser sovado,
Por quem lhe sempre negou qualquer legitimidade,
De ser livre para decidir seu próprio fado!

-Pelo menos já sei como este bate,
E o outro talvez até me mate!...
Pensou o Zé Povinho com renovado vigor,
-Vai de retro diabo tentador!...
Gritou, a custo, o pobre coitado,
Antecipando o pagamento do fiado,
Não riscado no livro do mesmo estupor!... 

Não se sabe bem como tem sobrevivido,
Mas, sabe-se que o Povo é sempre forte,
E, às vezes, para fugir ao medo da morte,
É bem capaz de foder quem o tem fodido!...

.
.
.


1 comentário:

  1. Não há limite para a criação poética num cenário onde a personagem principal é de crítica social e o mérito do poema “Medo” é da sensibilidade d’Alma frente aos caos que se instalou em Portugal quanto à representatividade política.

    A construção narrativa, marcada pela coerência, privilegia o tema que centraliza um tipo popular [“Sobre uma figura de nome Zé povinho,”]. Os versos estão além das rimas. No ritmo poético, a construção imagética transcende o campo da linguagem e nos permite visualizar a cena.

    Não é fácil comentar um poema quando d’Alma exerce sua função social. Nem mesmo quando as interrogações são substituídas por exclamações, e de efeito inversamente proporcional, provocam mais questionamentos que respostas, obrigando-nos ao esforço prévio da concordância que nunca foge à realidade [“Entre um lés de dignidade, / E o outro lés de carneiro dependente do cajado,”].

    É preciso abandonar alguns hábitos e seguir o fluxo poético do conhecimento aliado à intelectualidade. Permitir ser conduzido por suas ideias e seus ideais e fazer da leitura, igual entrega, na melhor expressão poética d’Alma, matéria de seu interesse permanente, a paixão pela história [“Mas, sabe-se que o Povo é sempre forte,”] baseada na consciência cívica e na experiência individual. Afinal, o sentido da palavra utilizada como arma em defesa da humanidade é o que diferencia um Poeta de um homem e uma estrofe de uma oração. Na solidão de seus versos a poesia contribui para, senão transformar, informar, ou incitar a reflexão [“E, às vezes, para fugir ao medo da morte, / É bem capaz de foder quem o tem fodido!...”].

    Ou mesmo, a acompanhar-nos a um passeio pelo infinito através da força da poesia... d’Alma.

    Seguimos, então, de mãos dadas.

    ¬

    ResponderEliminar