quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Quasecaos diÉbólico


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As contas por pagar,
A cabeça tonta a doer,
O fim do mês para fatigar,
Anorexia do salário a enjoar,
Os pelos em pé e varas a tremer,
O que resta da força a desfalecer,
O vómito na boca cheia a sufocar,
Uma conta atrasada por resolver,
O carteiro e mais contas a chegar,
Voltas à cabeça de entontecer,
Frias vertigens a ameaçar,
E a febre!...
De repente, o estômago em alerta,
O gargarejar das tripas e o casebre,
-Ai, Deus me tenha a porta aberta,
O cu que até ao alívio se aperta,
Correr como uma lebre,
Diarreia certa!...

Cercado por extra-humanos para cá da terra,
Talvez o fantasma de um Neil Armstrong lunar,
E da pequena nave onde me puseram a sonhar,
Parece-me ouvir um ranhoso fedelho que berra,
Um cadáver já previsto disse que o iam incinerar,
Os extraterrestres socorrem com ares de guerra,
Um batalhão de luvas brancas está pronto a pagar,
Os herméticos sabem que sou um cão que não ferra,
Aproximou-se uma picada que me fez desconfiar,
E logo me apaguei!...
Um raio de sol e acordei,
Que raio teria acontecido?!...
Não sei se sonhei que tinha morrido,
Talvez tenha mesmo morrido, pensei,
Tentei levantar-me, meio entontecido,
Soltei um peido e por ali me fiquei,
O cheirete deixou-me divertido,
Mas voltou a diarreia comigo,
Mais um e me envergonhei,
Mais um arrepio sentido,
    Senti que me borrei!...

Uma televisão a um canto,
A notícia e uma estória malévola,
É sem grande esforço que me levanto,
Falam dos meus sintomas, para meu espanto,
Para uns, sou a pior bomba a rebentar de ébola,
Para outros sou vacina milagrosa, por enquanto!...

Há um esquálido médico com ar desprezivo,
A sua indiferença nada diz sobre o diÉbolico respectivo,
Da superfície do seu ameaçador silêncio, quer que eu acredite,
Eu sou a cura de marca e o genérico do ébola inofensivo,
Prescreve-me caldos de galinha e um anti gripe!...


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1 comentário:

  1. “Quasecaos diÉbólico” assume, mediante a diversidade da temática, um ritmo urgente – como é a vida frente ao caos social e ao estado de saúde delicado, ou grave – unindo-se à sensibilidade humana através da multiplicidade de formas que seguem entre a história à atualidade, e entre o texto e o contexto à poesia, extremos que, trazidos à luz da realidade, precisam ser agregados à visão contemporânea sem o individualismo dos opostos.

    No limite, entre a Arte e a Realidade, ao contrário do sonho, ou da fantasia, ou da ficção, a dinâmica preenche uma lacuna no leitor, ou na leitora, através de uma abordagem lúcida, mas poética o bastante – característica principal dos Poemas d’Alma – e apresenta uma temporalidade imprescindível à ligação que existe com a própria pulsação da vida.

    O Poema transita entre sinais, sintomas [“Frias vertigens a ameaçar, / E a febre!...”, / “Diarreia certa!...”], diagnóstico [“Cercado por extra-humanos para cá da terra,”], tratamento [“E da pequena nave onde me puseram a sonhar,”] e prognóstico [“Um cadáver já previsto disse que o iam incinerar,”] do Ébola, ou Ebola, mas, o que mais chama a atenção, além da informação dos noticiários, [“Uma televisão a um canto, / A notícia e uma estória malévola,”], e da analogia entre a pandemia e a miséria, é o tom humorístico, cuja negritude é devastadora, que o Poema transpira, literalmente: “Há um esquálido médico com ar desprezivo,”.

    O interesse das Indústrias Farmacêuticas, enquanto fonte de estudos e apenas promessas milagrosas em concomitância com o descaso social, visivelmente doloroso na exclamação e nas reticências que sucedem ao último verso [“Prescreve-me caldos de galinha e um anti gripe!...”], por restringir a cura à qualidade de nutrientes absorvidos e por considerar a Vida (enigma de) e Morte (previsão de) são, na verdade, a única enfermidade incurável para António Pina.

    Bom domingo.

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