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Ao terceiro mês, os fetos afogaram-se no
charco,
A inocência das águas amnióticas foi
envenenada,
Inavegável o vazio da barriga esvaída do
seu arco,
As mãos deslizam pela áspera liberdade
abortada,
Um barco à vela perde-se na ventania
apavorada,
Caruncho come a quilha perplexa do último
barco,
Não resta mais nada!...
Queimam velas aos pés de corações de
madeira,
No sangue corre a água de uma vida
naufragada,
Cera fria escorre da memória de uma vida
inteira,
As
labaredas congelaram no calor de sua fogueira,
E
fecharam-se em pontes de água e fé congelada,
Os olhos de Deus ficaram censurados na fronteira,
Não resta mais nada!...
Do pinhal à beira mar, cortaram o último
pinheiro,
Dos roseirais do mar arrancaram as
últimas rosas,
Orações, de mãos atadas, rezaram a um
madeiro,
Uma entrada e um sinal sem saída e sem
dinheiro,
As preces apagaram-se entre lágrimas
silenciosas,
Árvores boas foram crucificadas no mundo
inteiro,
Madeira dos santos ainda verte lágrimas resinosas!...
Um mar de perdição em dois desertos sem
moral,
Deserto e o sacrifício humano que se
empesta,
Águas
apodrecidas à deriva no juízo final,
E do respeito pela justiça divinal,
Já pouco
mais de nada resta!...
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Muito mais que versar sobre moral, ética ou religião, António Pina propõe um mergulho profundo acerca de um tema considerado tabu, entretanto, a espontaneidade que conduz à familiaridade com o Poema, por mais que passe a impressão de que o ‘dedo em riste’ é parte integrante dessa paisagem constituída de ‘caos e deserto’, não leva-nos a considerá-la como natural. Afinal, a crítica presente em “Nada Resta” é quase uma previsão óbvia, ou uma profecia, que está reservada à humanidade, é o próprio ‘aborto’ que destrói as bases sociais da sociedade.
ResponderEliminarAmpliando o olhar, ou submergindo nas águas profundas dessa Poesia, que ultrapassa os padrões sociais ou culturais de gênero, o Poema prima simultaneamente pela limitação, ou escassez que favorece a exatidão, suprimindo o prolixo, e pela valorização, no plano temático, das decorrências do aborto [“Um mar de perdição em dois desertos sem moral, / Deserto e o sacrifício humano que se empesta,”]. E dessa forma, atinge sem nenhuma espécie de sacrifício, uma vez que a instituição primordial é a Poesia que se faz Construtora e Libertadora [“E do respeito pela justiça divinal,”].
As faces sombrias e a frase como pano de fundo no manifesto complementam a simbologia que se funde com a tela negra da janela. ‘Desordem e Fim do Mundo’, por mais motivadores de sentimentos que possam ser, estão muito distantes das condições em que se produz a Poesia d’Alma, que é a bem da verdade, aprendizado pleno da empatia, da similaridade e da proximidade com a Vida.
Boa semana.