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Aquela imagem teimosa,
A criança de rosto empoeirado,
Mãos que sacodem terra do pão,
O sacudir antigo da fome receosa,
Aquele olhar envergonhado,
E a palidez da razão!...
Uma lágrima caída no chão,
Outra que se esconde, medrosa,
O ranho sujo pela fome provado,
O insulso
sabor da resignação,
E a palidez silenciosa!...
O prato cheio de fé religiosa,
Na ponta da língua o pai-nosso rezado,
Todas as rezas e o acto de contrição,
O sonhar com a fartura perigosa,
E a palidez do fado!...
O desespero amordaçado,
A mordaça com cores da nação,
O grito pobre de uma criança ranhosa,
Moldura à imagem de um Povo amarrado!...
Chegaram os cravos da revolução,
Logo a seguir ergueu-se o punho cerrado,
Abriu-se a mão que se transformou numa
rosa,
Setas apontavam um céu azul e o ouro da
fartura,
Atrás das costas ficou o mal que nem
sempre dura,
E o peso dos sonhos prometidos,
Dos soníferos cumpridos,
E o fim dos pesadelos da ditadura;
Cravos e mais cravos, por cravos
protegidos,
Rosas e mais rosas entre cravos floridos,
O florescer livre da arte e da cultura,
O princípio de uma aventura,
E os manifestos permitidos…
O futuro…
O futuro…
A velocidade e o muro,
O fim que o cravo não previu,
E seu esborrachar prematuro!...
Esta imagem que teima,
De crianças sem pais nem abrigo,
A fome da democracia que queima,
Cravos que a ditadura trouxe consigo!...
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Aparentemente, através do título e da estrutura, o Poema, “Ditadura dos Cravos”, constituído pelas dicotomias passado/presente, opressão/liberdade e ditadura/democracia reúne o fracasso do trajeto evolutivo à pretensão democrática de Portugal. Mas não é só. Ou, não apenas.
ResponderEliminarNuma leitura retroativa aos últimos Poemas d’Alma [Os Cravos das Duas Mil Páscoas, Cravos à Força (Abril Nunca Mais) e Cravos à Força], cuja temática, entre outras, persevera em ‘Cravos’, nota-se que eles não estão isolados. Ao contrário, eles se interagem e se complementam. Ao recuperar a história e colocá-la em diálogo com a poesia, fica evidente a dinâmica de construção dentro da importância que se deve a esse movimento literário. E é desse movimento que atingimos a compreensão e a dimensão dos problemas sociais que acontecem em todos os níveis em Portugal.
Interessante destacar como cada Poema, apesar de suas particularidades, mas dependentes de ‘Abril’, que ora remete à historiografia distante, ora surge num contexto atualizado, dialoga com os outros Poemas e interfere na história a partir do momento em que, entre a narrativa poética com a história oficial, A. Pina estabelece uma mediação literária e social metaforizada pelas imagens [cravoP&B/bandeira, a corrosão do metal, cravos/espinhos e cravo/palidez], pelas diversas lacunas existentes nos versos e nas muitas exclamações seguidas de suas reticências.
Mas, seria um erro imperdoável de minha parte subestimar todo o fazer poético dessa coletânea sem mencionar que a beleza, ou a maior virtude que todos os Poemas citados abrigam, está concentrada na preocupação com o fazer/recepção do sofrimento e/ou fracasso da democracia, do que com a forma poética, como cidadão e compatriota que A. Pina é, e que se encontra num grau bem superior ao do Poeta. Ou do escritor. E isso só é possível a partir do momento em que ele se posiciona como parte integrante dessa mistura, ou como um dos elos entre a poesia/história e a nação e, principalmente, como produto final que é da ‘ditadura dos cravos’.
Sem dúvida, uma inovação sem precedentes na [história] da Poesia d’Alma!
Bom domingo.