terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

...do Siso

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Tanto demorou a nascer,
Quase tanto quanto o juízo,
Tanto não queria eu o perder,
E antes que pudesse perceber,
Ainda antes de qualquer aviso,
Anestesiado me foi o sorriso,
Às mãos do que tinha de ser,
Arrancado foi o meu dente,
    E não sei o quanto de siso!...

Vê-se o brilho aparente,
No esmalte da uma bela coroa,
Disfarça-se o hálito que magoa,
A quem cheira a boca de frente,
Esconde-se a dentina decadente,
E uma infectada polpa em pessoa,
Dentes mordem discretamente,
    Outros mordem línguas à toa!...

Saio insensível pela anestesia,
Bocas bem tratadas são impedidas de sentir,
Granulomas consentidos fazem os dentes cair,
Por não me sentir, minha língua quase eu comia,
A fome é o antibiótico de um povo em agonia,
Caem os dentes de bocas prestes a ruir,
   Cerram-se novos dentes noutro dia!...

Já sem ver o lado direito do juízo,
Vejo a dor escondida,
Vejo gente,
Vejo gente mordida,
Vejo um dente,
Vejo a verdade doente,
Vejo lindos dentes sem vida,
Vejo o pus sobre a comida,
    Vejo a coroa que mente…
      E já não vejo o meu dente do siso!...
    
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2 comentários:

  1. Motivado por um fato do cotidiano, o Poema “...do Siso” é marcado por uma realidade que não admite um instante de fuga qualquer, e, por mais que se aproxime de ser tema de humor, a dor que sobressai de seus versos é matéria privilegiada de um percurso que inclui angústia, hipocrisia, fracasso e exclusão social, vinculado à situação socioeconômica do país.

    Se, por um lado, a perspectiva lírica do Poema é adquirida a partir da urgência em retirar um dente doente, preservando, assim, a higiene e a saúde bucal, por outro, permite inserir o ‘sorriso’, ou o humor, como consequência contrária ao bom senso, ou ao juízo, da condição humana, revelando-se, dessa forma, como tema de reflexão.

    Já li muitos poemas sociais aqui mesmo. Alguns, me atrevi a comentar. Outros, nem tanto. E houve um momento em que cogitei a hipótese de incluir este Poema à lista dos ‘não comentados’, reservando um lugar apenas para a lembrança da cena, e que incluía dor e sangue, mesmo porque era a informação que ele continha quando foi publicado [“Continua depois de parar de sangrar...”].

    E então, que vem a vida... os compromissos profissionais, os últimos fatos envolvendo minha vida pessoal... e aquele sangue ainda me chamava a atenção. E aquele anúncio... ‘até parar de sangrar’. E esperei. Pela hemostasia.

    E quando ela chegou, a Poesia me exigia a comentar, e me lembrei de algo como: quando António Pina fica em Poesia por dentro, também vira Poesia.

    Mas como colocar em palavras o que eu havia acabado de experimentar?

    E me senti a pior de todas as suas leitoras! Porque não deveria ser uma tarefa impossível de realizar... um comentário! Sempre em busca de onde está o foco de seu interesse, o que foi que quis dizer com aquele verso, ou com aquela estrofe... com o tema! É a partir dos meus questionamentos é que adquiro conhecimento. Entretanto, ler, às vezes, é tão complexo, tão... E escrever a partir de uma sensação... então! Mas não poderia me eximir da minha participação, sob pena de que o Poema se tratasse de uma ilusão, e sabia que o campo de minha atuação estava justamente ali, naquela anestesia. Ou naquela sensação de ‘insensível’.

    A Poesia d’Alma pode ser tudo. Tudo! Exceto insensível.

    E concluí, como o Poema sugere, que não importava que a dor d'Alma estivesse momentaneamente anestesiada, ou latente, ainda assim ela existe. No outro. Em todos os outros que não têm o privilégio de não sentir dor. E se não fosse assim, a Poesia não passaria de mera repetidora.


    Está comentado. Finalmente.

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