terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O Chapéu

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Cortei o cabelo no velho barbeiro,
O grisalho da nostalgia demasiado rente,
Um pouco mais de tempo rente ao dinheiro,
As tesouras matreiras tosavam um corte certeiro,
Cortavam velhos tempos e vendiam quentes chapéus,
O Vento barbeava a geada de cortar o gelo dos céus,
Vesti o quente capote e espreitei o azulado do céu,
   Comprei um chapéu!...
Ensaio o bater do dente,
Saio de cabelo varrido e sigo em frente;
Vou estrear o chapéu, quando passa o Tibério carpinteiro,
Saúdo de cabeça descoberta, o respeito vem sempre primeiro,
Um desdenhosos cabeludo que passa oferece-me um pente,
Penteio um sorriso e devolvo-lhe o presente,
Depois da frescura do corte,
Entranha-se-me um frio mais forte,
Mas eu tenho um chapéu que o barbeiro me vendeu,
E o meu cabelo que por lá ficou, que o tenha como seu,
Para o frio, tenho um chapéu e sinto-me com sorte!...
Apresso-me a estrear o chapéu que é meu,
Minha cabeça gelada já o sente a assentar,
Tão feliz por um chapéu poder usar,
É então que, de repente,
Me saúda o Carlos Clemente,
-Saúdo quem me respeitar-
Com o chapéu na mão dormente,
Faço uma vénia, sem parar,
Crianças brincam com gelo que não quer derreter,
Uma velhota escorrega no gelo e faz-me doer,
Arrepio-me até às orelhas cheias de frieiras,
Pego no chapéu e dou os bons dias a duas freiras,
Passa o Manel a correr,
Passa o senhor Joaquim,
-Como vai o amigo, está bom ou não quer dizer?...
-Assim, assim…
E agora sim,
Vou andar de chapéu, enfim!...
Adianto o passo e passa-me o frio de tão comovido,
Um estalo no toutiço faz-me o chapéu saltar,
-Há quanto tempo não te via!!!...
Era o Zé de cabelo branco tingido,
Havia desaparecido,
E logo agora havia de voltar!!!!!...
Apanhei o chapéu preto e quentinho,
Uma rajada de vento fê-lo voar,
Corri atrás dele como um maluquinho,
   Olhei para os lados e estava sozinho!...
Só não olhei para a frente onde me olhava o João,
Passei pelo cabeludo Joãozinho,
Pelo Quinzinho,
 Passou o Carlão,
O filho do vizinho,
E o Sebastião,
O gato vadio e até o velho cão,
Que corria atrás do Quim manquinho,
  Por todos tirei o chapéu em humilde saudação!...
Há tanto tempo que não via minha professora da escola:
-Olá senhora professora, como passou?
Ela quer saber como estou,
-Com um friozinho…
Estende-se a mão de um pedinte e dou uma esmola,
Tropeça em mim o Felício que não é bom da cachola,
A vesga padeira dá-me um encontrão,
E lá volta o chapéu para o chão,
Apressa-se o gordo padre que me confessou,
Apanha-me o chapéu o magro sacristão!...
Aí vem a dona Maria do Toninho,
Mais o Toninho que se engasgou,
Com os filhos, pequeno Bonifácio e o grande Zezinho,
Perguntam-me como vou…
Ai, como vou, como vou…
A mais de muitos digo que vou devagarinho,
   Encolho os ombros a mais um que me saudou!...

Chego a casa com um estranho calor,
Tantas foram as vezes que não pus o chapéu,
Quanto todas aquelas vezes que o quis pôr,
Não me falem de chapéus por favor,
   Vou continuar de cabeça ao léu!...
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2 comentários:

  1. Que grande trabalheira esse corte de cabelo e o raio do chapéu lhe deu!
    Mas lá que fiquei contente, fiquei, e bastante. Fez-me sorrir muito e alegrou o meu fim de dia.
    Obrigada!
    Um conselho: não ande de cabeça ao léu. É melhor usar o chapéu!

    Um abraço aconchegante.:)

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  2. Um poema apressado, como são apressadas, e urgentes, a vida, fome e o frio, assim como o respeito e a gentileza. No espaço, entre um verso e outro, ou entre cumprimento e outro, revela-se a intenção da educação, ou da mão em saudação à disposição, - do conhecido, amigo, diferente ou indiferente, do pedinte, do vizinho, do presente e da infância, com futuro - da imaginação a serviço da criatividade e de uma poesia capaz de criar ou de fazer renascer novas formas de valorização da vida, e conceber à cena de um cotidiano material, um sentido humanamente possível para se tornar real.

    O olhar, [antes comprido, talvez turvo, agora livre de qualquer obstrução casual - barbear: aparar o excesso do cabelo, ou da desilusão], demoradamente, constrói uma imagem em virtude da concepção de poesia, e serve de elemento esclarecedor à visão poética. E o que se revela é um Poema de profundo respeito por todos aqueles que, de alguma forma, atua numa linha de interseção com a poesia que d’Alma, no trajeto de sua caminhada, exerce com dignidade sem distinção de classe, ou raça, discriminação, preconceito, ou oportunismo, resultando numa Poesia de conteúdo livre, leve, sereno, e, mesmo divertido, sem perder em nada para a interioridade das coisas e da vida. Humanamente possível!

    O que quis mostrar com meu comentário é que aqui a poesia não vive de borda. Não boia, não flutua, e não fenece inexplicavelmente, ou inutilmente, nem no tempo certo nem de véspera. Há um mergulho profundo na alma humana que se expressa na poesia d’Alma transcendendo qualquer explicação, e dispensa qualquer comentário mais ou menos elaborado.

    Sua beleza consiste, tal qual o poema em foco, em dar sem receber ou se preocupar com o retorno. Nobre, d’Alma, num simples estender e recolher de mãos, doa, e doa-se. Num clima. Numa sensação que tanto é pele, quanto carne. Sangue. Vísceras. Num percurso em comunhão com a busca. E encontro n“O Chapéu” e nos diversos Poemas d’Alma toda a grandeza íntima que ressoa de seus versos.

    E antes todas as cabeças se mantivessem “ao léu”.



    Feliz Natal António Pina.

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