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segunda-feira, 9 de maio de 2011

O Peregrino

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Uma infeliz criatura,
Já de nascença sem pernas para andar,
Prometeu até aos pés da Sagrada Santa rastejar,
Abrir-se aos ensinamentos da Sagrada Escritura,
Se aliviasse essa alma de tão injusta agrura,
Concedendo-lhe o milagre de caminhar!...

Num abençoado Maio santo de trovoada,
Entre raios fantásticos e misteriosos trovões,
Atirou-se aquela alma lá do alto de suas convicções,
Estatelando o rosto numa porção de trampa dejectada;
Entre lábios ensanguentados, limpou a língua toda borrada,
Enquanto com os dedos esfolados e com arranhões,
Pediu licença a Deus, antecipando mil pedidos de perdões,
Por soltar uns desabafos que deixou aquela alma aliviada:
-Foda-se!... Queixou-se ao acaso entre outros palavrões,
-Se não me nascerem umas pernas ao beijar os pés da Adorada,
Juro continuar sem andar e voltar a não acreditar em mais nada!...

Lá começou a rastejar no início do escolhido calvário,
E tal era a fé perneta daquela alma penitente,
Que em poucas horas já provara pedras de sabor diferente,
Saboreando pratos de terra no chão e contas de um rosário,
Alimentando-lhe as forças com que alargava seu vocabulário,
Pelo que praguejava por cada metro de provação indecente,
Na certeza do sacrifício ser mesmo necessário,
Para que o regresso não fosse plangente,
E a todos mostrar-se como crente voluntário!...

Subserviente à sua vontade carregada de fé peregrina,
Bem ataviados e formosos leigos de afortunada sina,
Passavam por ele espertos peregrinos de pé ligeiro,
Classificando aquela alma de meio peregrino verdadeiro,
Metade da fé de uma outra doutrina,
Avidez egoísta de quem quer chegar primeiro,
Sem a necessidade de ser o oportuno herdeiro,
Das migalhas guardadas por pecados de rapina,
Rastos de fome em restos de orgulho de cordeiro,
Sisados na metade da alma de meia morfina,
Que uma parte do corpo vendeu ao banqueiro,
Deixando a outra parte ao abandono na esquina,
Misturada na fé da carne que outra fé não ensina,
Outros meados credos de um credo inteiro,
Vedado a meias almas de meio corpo rasteiro!...

Das horas já inchadas de anos,
De cada centímetro um quilómetro ensanguentado,
Já sentia o perneta seu coração profano,
Ser dilacerado por chibatadas de delírio humano,
Entre lautos almoços do mais fino pó só aos eleitos reservado,
Em fartas ceias de excremento vário de terra misturado,
Ainda serviu de meio tapete à passagem de outro meio engano,
E, ainda que espezinhado,
Só não foi rasteirado,
Porque, já se sabe, faltavam as pernas ao pobre Lusitano;
Reconhecendo um hábito de poder soberano,
Já que qualquer romeiro sobre ele passava,
Arrastou-se com a pouca força que lhe restava,
Convidando o voto de castidade a servir-se de seu corpo insano,
Ensaiando olhares de suposta sedução estranha no caminho atravessada,
Como uma espinha de peixe podre na garganta espetada,
Provocando náuseas ao clérigo da tenra carne em sagrado segredo ufano!...


Desprezado e tão longe dos pés da Santa que prometeu beijar,
Com as unhas esgaçadas e já incapaz de dar mais um “passo”,
Nunca o faria, por aquele “andar”,
Porque se não levasse ao Destino o beijo que prometera dar,
Desejo que de Esperança se tornava escasso,
Seu sacrifício inumano seria considerado fracasso;
Ainda rodou o tronco sobre si mesmo, tentando sobre as costas avançar,
Mas com as mãos desfeitas e a falta de pernas como castigo crasso,
Tudo que conseguiu foi praguejar,
Ficando ali imóvel de papo para o ar,
Tal como seu parado olhar baço,
Procurando o azul do céu atrás de pesadas nuvens de negro despertar!...


Quando se preparava para ensaiar um ódio de vingança,
Enquanto ainda procurava o céu azul e um novo dia,
Um azul estranho espreitou sua desconfiança;
Parecendo fitá-lo lá do alto de algo que ele não entendia,
Um maltrapilho de barba empoeirada sua mão lhe oferecia,
Reparou no pobre peregrino uma desencorajadora semelhança,
Com a fome de quem sempre esteve bem longe da bonança,
E praguejou mais uns agradecimentos de escárnio a um deus seu guia:
-Obrigadinho por me enviares a ajuda mais pobre da hierarquia!...
E, enquanto a ironia desprezível era seu fiel da balança,
Vendo passar perto dele um gordo símbolo de abastança,
Arrastou-se célere, para longe do maltrapilho que desconhecia,
Temendo ser confundido com aquele tolo que a mão lhe estendia!...


-Ó vadio, segue o teu caminho e fica bem longe de mim!
Disse o aleijado ao estranho peregrino que sorria humildemente,
-Desaparece, instigou com desdém o sem-pernas, descrente,
-Não quero ser visto junto de um tão miserável assim,
E, continuando a desdenhar, disse que para a sua reputação seria ruim:
-Nem Deus quer saber de pobres como tu, ó demente!...
Se não és rico, mais vale à tua vida pores fim!
Mas o magro peregrino continuou sorrindo alheio àquele chinfrim,
E até prometeu carregar o alijado até ao templo do milagroso jardim!...


Olhando de soslaio, ainda no chão prostrado,
A primeira coisa que viu foi um par de sandálias disjunto,
Nos estranhos pés limpos daquele misterioso esfarrapado;
Rebolou, então, o olhar para um e outro lado,
Não fosse alguém vê-lo “daquilo” junto,
Lá acedeu o arrogante aleijado,
Deixando claro que não haveria mais assunto,
E não queria conversas ao ser carregado,
Porque do nada e ninguém era o tolo sorridente transunto,
Já encavalitado nas costas do bom Homem, ordenou irado:
-Toca a cavalgar bem depressa ó piolhoso bestunto!
E este, com sorriso amável, seguiu apoiado num esguio cajado!...


Entre esgares de desprezo e palavras injuriosas,
Bem seguro em cima do Homem que continuava a sorrir,
Aproximavam-se aquelas almas do sagrado solo de gente religiosa,
E se a caminhada, para uns, fora penosa,
Foi para aquela alma sem pernas uma esperança que começou a luzir,
Graças à bondade de outra Alma que a Esperança lhe deu sem ele a pedir!...
Um pouco antes de entrar em solo de milagres dos crentes,
O perneta puxou violentamente o cabelo do desconhecido prestável,
Fazendo de quem o ajudou uma travada besta miserável,
Desferiu o perneta ordens insolentes,
De intenções que ele mais achava convenientes,
E ignorando a ajuda sobre-humana de Alma tão admirável,
Imediatamente ordenou ao bondoso venerável:
-Põe-me no chão, ó besta de carga de todas as gentes,
Se os ricos senhores e pessoas tão influentes,
Me vêm acompanhado de uma figura como tu tão insuportável,
Será pouco provável,
Que a Santa adorada me dê um par de pernas valentes!


O Homem que o carregara desde os princípios da Fé,
Delicadamente o aconchegou no chão sagrado, na entrada do templo;
Sorrindo meigamente, olhou o Céu para logo desferir um santo pontapé,
Na primeira banca que vendia pecados da santa Sé,
Disfarçados de milagroso exemplo!...


Correndo à cajadada todo o mercado por tantos milagres feitos,
Com o cajado que nunca encontrou na bondade obstáculo,
Expulsou mercadores de ímpios proveitos,
Por ditos apóstolos de pressupostos purgados preceitos,
Elegendo em seu representante, mais um tentáculo,
De rico homem do cajado que transporta o sagrado Báculo!...


Anos passados, ainda rastejando entre a poeira da alma vencida,
Recorda o pobre aleijadinho sem suas pernas para andar,
Um passarinho morto que o Homem que o carregou fez voar,
Lembrou-se ainda de uma promessa não cumprida,
De sua Fé que sempre estivera perdida,
E da língua afiada que o privara de falar,
Mas, o que mais dói em sua Alma ferida,
É o sorriso meigo daquele olhar,
Que um dia lhe ofereceu nova Vida,
E que, por ingratidão, o aleijadinho não soube aceitar!...
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