.
.
.
Visto pelo olho da friesta cega que
espreita,
Escorre o breu denso e frio pelas rugas
da caverna,
Cobre os olhos rendidos à luz desta
cegueira moderna,
Teimam as palavras na voz já muda de tão gasta
e suspeita,
Oca e vã, se repete a erodida nesta
democracia desfeita,
De homólogo em homólogo, por homólogo se
alterna;
Esquecidas foram as searas de patriótico
cunho,
E antes que se ergam os nós atados no
punho,
Encaba-se o povo cegado que cego se
governa,
Caga-se Camões para este cego 10 de Junho!...
Eram mais de dez cegos em ajuntamento,
Eram mais de dez cegos a ver o que mais
ninguém via,
Eram mais de dez cegos numa visão do seu
merecimento,
Eram mais de dez os cegos que viam a noite
igual ao dia,
Eram mais de dez os cegos em ensurdecedora
afonia,
Eram mais de dez cegos em estado de
agravamento,
Eram mais de dez cegos a presidir ao
julgamento,
Eram mais de dez cegos de cega valia;
Olhavam-me nos olhos, os cegos de viés,
Como se eu não visse o que cada cego não
via,
Desprezam o meu olhar da cabeça aos pés,
E era aos pés do olhar que cada cego
caía,
Quando sofria sua cegueira um iluminado
revés,
Era um cego só, que com os outros cegos
se ria,
Só de cegos a ver o que viam, eram mais de dez!...
Visto pelo olho da friesta cega que
espreita,
Escorre uma noite densa sobre o olhar da
cegueira,
Uma bandeira arde ao sabor de uma cega elite
eleita,
Ondula aos olhos de um cego que pouco a respeita,
Não vê o cego, as cores que ardem numa fogueira!....
.
.
Ao coletar a experiência e transformar a realidade, a soma dos versos [“Eram mais de dez cegos...”] confere ao Poema uma visão panorâmica sobre as dificuldades que Portugal atravessa. Dessa forma, “+ de 10 cegos do 10 de Junho” se constitui como um mosaico de visões antidemocráticas. E é essa visão, por se encontrar de fora, que habilita a Poesia a enxergar para além das imagens que se apresentam, o que não se sucederia, se, por ventura, fosse ela também cega ao estatuto de liberdade.
ResponderEliminarUma adição que subtrai os direitos de uma nação e exacerba o sofrimento. A cegueira atual de onde foram exiladas a razão e a clarividência social, mesmo das memórias e das narrativas obliteradas pela ilusão da história, transparece desnudando a máscara política que oculta a miséria que o País se encontra.
Um Poema, e ao contrário do tema, como primeira leitura, ou impressão, visual, e uma conta sensível, e iluminada. A tinta, destacada no último verso [“Não vê o cego, as cores que ardem numa fogueira!...”] realça a necessidade de se tingir uma nova história, e deixar, por fim, reluzir as cores da bandeira de Portugal que prevalecem sobre a imagem P&B.
Arte, António Pina!
Bom fim de semana.