domingo, 24 de julho de 2011

Remorso

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Esqueletos com medo da morte,
Tão preocupados em não morrer,
Sabiam que algo os estava a roer,
Atroz dor até ao tutano consorte,
De tão pressentida dentada forte,
Do remorso incapaz de esquecer,
A carne que fora dada a comer!...

Quem se fartou da carne bem viva,
Digere fome no caminho contrário,
Ossada em travessia num calvário,
Onde velhos ossos sem alternativa,
São uma reminiscente vã tentativa,
De esqueleto fechado no armário!...

Na vontade do remorso,
Está bem vivo o apetite da fome,
Que até aos ossos tudo come!...

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sábado, 23 de julho de 2011

...à Deriva

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Um barquinho feito de sonhos,
Zarpara na tempestade do olhar,
Navegou entre pesadelos medonhos,
E toda a água que os olhos viram no mar,
Lhe salgaram as lágrimas que o fizeram chorar!...

Barquinhos de papel,
Feitos de cartas que não receberam,
Derivam nas palavras que não escreveram,
Endereçadas ao Amar azul do céu sempre fiel,
Confissões escondidas na mensagem cruel,
Que os olhos dos barquitos não leram!...

Barquitos que à deriva transportam amor,
Essa carga excessiva divagada em Alto Amar,
Naufragam nos olhos de um profundo estupor!!...

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quinta-feira, 21 de julho de 2011

Sereias de Areia

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Naveguei mares de fome rasgando celestes firmamentos,
Bolinei triângulos de velas enganando traiçoeiros ventos,
Fui açoitado nos promontórios dos corpos que percorri,
Sonhando fêmeas em cada costa que por elas submergi,
Possuí a histeria das bruxas em penetrativos tormentos,
Nadei de vértebra em vértebra saboreando costas de ti,
Ainda sofri clandestinos castigos por tão febris intentos,
Onde lambi o convés de teus naufragados sentimentos,
Saboreando grilhetas de sal que do teu tesouro senti!...

Encontrei-me tão perdido no tempo de finas areias,
Gravei a erosão de seu nome em cada anónimo grão,
Juntei búzios mágicos em hipérboles de minhas ideias,
Fitei meu mar encantado por minhas supostas sereias,
Esperando por elas em sereias da minha inspiração;
Pensava eu estar seguro nos braços seguros de Zeus,
Esperança à deriva em branca espuma de imensidão,
Ressaca repousada entre carinhos de abraços meus,
Castelos de sua areia e discípulas metáforas de Deus,
Ode minha cantada à faina sagrada de seu coração!...

Desbravei virgindades em bateis solitários,
Arcas douradas prenhas de negros dobrões,
Ensaiei abordagens com a carta dos corsários,
Autorização de reis passada aos mais fiéis ladrões,
Afundando promessas gravadas em meigos corações,
Diário de bordo escrito com o sal de prazeres vários!...

De tão rico tesouro real restou o broche prometido,
Enterrado na areia do teu corpo louco de mim escondido,
Trabalhei o mar entre tuas pernas com afinco de grumete,
Descobrindo finalmente teu tesouro, fruto do mar proibido!...

Navegando minha língua guiada por teus astrolábios,
Encontrei continentes de prazer em teus desejos sábios!...


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segunda-feira, 18 de julho de 2011

...navegar

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Algures da visão do meu limite suspenso,
Escorro-me de areia branca numa azul bruma,
E sigo névoas ao vento de teu navegar propenso,
Às despedidas bordadas num encontro pretenso,
De acenada sereia que na saudade se esfuma,
 Imaginando a travessia do atlântico imenso!...

É doce o monograma das rotas de sal,
Que flutuam no adeus de teu salgado lenço,
Talvez lágrimas emersas de meu naufrágio real,
Ou a salvação das algas de teu oceano virtual!...

Há segredos vagos a sobreviver na lacuna,
De profundos pensamentos com sentido intenso,
Afogados na maresia íntima que se liberta da espuma!...


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sexta-feira, 15 de julho de 2011

Pescador

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Temperam-se as redes de pobreza,
Com lágrima de fome e sal de tristeza,
Na traída costa das tuas fustigadas costas,
Comem-te à Italiana, à Espanhola e à francesa,
Deliciosos barcos abatidos nas praias que tanto gostas
 Deleite à beira mar onde foram servidos às postas,
Em vez da nossa gorda sardinha Portuguesa!...

Nos polegares baixos de Cavaco,
Velhos pescadores comem à mesa,
A fome de um acordo opaco!...
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segunda-feira, 11 de julho de 2011

Abutres de Cristal

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Fui pérola azul de cristal protegida,
Em regaço de cristal concha de amor,
Fui mimada em placenta cristal de vida,
Filha cristal de um esquecido parto sem dor,
Tesouro terno de tão desmedido cristal valor,
Aval branco de cristal esperança desmedida,
Palavra de cristal em páginas brancas lida,
Pétalas de cristal soletradas numa flor!...

Sou agora filha de dor sem parto,
Amante vertigem de acolhedor abismo,
Espiral hipnótica precipitada no vazio farto,
Para fora de mim da despedida que parto,
Partindo de ti numa cicatriz de meu egoísmo,
Fecundo teu mundo com meu doentio cinismo,
Sendo parte que não sou da quebra que parto!...

Quisera ser eu também cristal adorada,
Esquecendo que do útero era eu útero também,
Experimentei o ciúme pela vida idolatrada,
Que dentro de mim por ti fora mimada,
E do amor de cristal à utilidade de mãe,
Foi um curto passo em oferta de desdém,
Oferecida a mim e por mim desdenhada,
Passando a ser mulher que por aí passa,
Como quem passa não passando por ninguém,
Calvário que o meu olhar de cristal não disfarça,
Brilhando faíscas de cristal na vontade quebrada,
Puzzle de estilhaços em prévio futuro de desgraça!...

Voou rasteiro meu cristal sem suas plumas aladas,
Aprisionando minhas asas que não me deixam voar,
Sou tomada por tão iguais penas de aves negras violadas,
Agoiros que agoiram o coração de almas fracas magoadas,
Mantendo a ferida aberta pelo prazer certo de magoar,
Paixão masoquista de negro e sádico amar!...

Esta fopa que das cinzas voou,
É ínsula ausente que de mim se apartou,
Extinguido fogo deste frio que já não sinto,
Tristeza sem fim de minha memória que se eivou,
Cristal verde em despeito meu de insulso absinto,
Verdade ancestral que em silêncio desminto,
Afirmando a negação do vazio que ficou,
Ébria mentira do que não minto!...

Insular de mim, poleiro de teu corvo,
Circunvalação agoirenta de milhafres acolhedores,
Amigas insulares onde ser Mulher feliz é estorvo,
Reconquista proibida de negros abutres solitários,
Vendendo sofismas entre fumos de falsos favores,
Oferecem a comiseração dos divórcios solidários,
Pintando arco-íris com os fumos de negras cores!...

Mas à Vida que tudo oferece,
É oferecida a ingratidão por quem a Vida não merece!...

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sábado, 9 de julho de 2011

Ninho


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…Depois,
Já no abafo do estio,
Com os ninhos abandonados,
Era vê-los ali parados,
Como se morressem de frio,
No ninho já vazio,
Onde os Filhos foram criados!...

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Canibal

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…Estranho canibal,
Comedor de mulheres cheias,
Famélico por magras bocetas sem fim,
Pandoras carnudas de cornudo festim,
Estranho canibal,
Adefágico animal,
Serviçal de mulheres servidas em ceias,
Degustador,
Sem sabor,
Planta carnívora de jardim,
Linda flor,
Flores feias,
Jardineiro de mulheres alheias,
Que não são tão alheias assim!...

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quarta-feira, 6 de julho de 2011

Porca



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"…Sou mais uma porca perdida,
Abandonada no ferro velho da vida,
Porca de velho e solto parafuso perdido,
Eu sou mais uma solitária porca carcomida,
Volta de luz aberta à vida que se abria contigo,
E ao lubrificado parafuso que se enroscava comigo,
Dentro da minha jovial rosca de porca possuída!..."

Um corroído parafuso desenroscado,
Solta-se numa última volta ferrugenta,
Perde-se no desuso da velha ferramenta,
Ferro velho à porca da vida abandonado!...

A corrosão dos parafusos,
 Corrói o amplexo das porcas,
Que perdem seus brilhos difusos!...

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sexta-feira, 1 de julho de 2011

"Canta Parolaço"


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“Canta Parolaço”,
Era um mítico personagem,
O canto era seu desembaraço,
Seu sucesso um verdadeiro fracasso,
Só comparável à cultural saloia imagem,
Que, a verdade bem escrita de passagem,
O teve como farrapo de culto ricaço!...

Quando pela freguesia,
Qualquer praguita aparecia,
Remelavam-se olhos com andaço,
Aos vómitos de viroses seguia o cagaço,
Eis que do nada se apresentava a valentia,
Com o seu canto de exemplar filosofia,
O incomparável “Canta Parolaço”!...

Metro e meio de macho perfeito,
Quarenta e tal quilitos de peito feito,
Cantava “olhem eu aqui bem aprumado”,
 Contaminando toda a cultura do espaço,
Com seu incrível ego satisfeito,
E tal era seu inchaço,
Que deixava admirado,
Até o mais acostumado,
Ao intrometido embaraço,
De levar com o “Canta Parolaço”!...

O fato branco pelo próprio corpo engomado,
Que lhe fora dado por um ilustre escriva defunto,
Insuflava-lhe o ar de um preto brilhante desbotado,
Cor julgada pelo lustro daquele “Canto” afortunado,
Ídolo bem ataviado dos mal vestidos sem assunto,
Esses parolaços iguais ao canto e seu conjunto!...

Lendas falam de monstros terríveis,
Leões esfomeados dados à crueldade no paço,
Em ruelas, touros eram largados em investidas horríveis,
Gritos exasperados ainda são igualdades tão audíveis;
Então, caído do Céu, ouvia-se o protector passo,
Da destemida bazófia do “Canta Parolaço”!...

Muito tarde se deitava,
Para levantar-se muito cedo,
Exausto adormecia em sossego,
Pobre “Canta Parolaço”,
Nos braços de Morfeu sonhava,
E já no regaço do aconchego,
No silêncio e em segredo…
O “Canto” só,
 Que balbuciava:
-Mãe!...
Eu tenho medo!
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