terça-feira, 10 de junho de 2014

+ de 10 cegos do 10 de Junho


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Visto pelo olho da friesta cega que espreita,
Escorre o breu denso e frio pelas rugas da caverna,
Cobre os olhos rendidos à luz desta cegueira moderna,
Teimam as palavras na voz já muda de tão gasta e suspeita,
Oca e vã, se repete a erodida nesta democracia desfeita,
De homólogo em homólogo, por homólogo se alterna;
Esquecidas foram as searas de patriótico cunho,
E antes que se ergam os nós atados no punho,
Encaba-se o povo cegado que cego se governa,
    Caga-se Camões para este cego 10 de Junho!...

Eram mais de dez cegos em ajuntamento,
Eram mais de dez cegos a ver o que mais ninguém via,
Eram mais de dez cegos numa visão do seu merecimento,
Eram mais de dez os cegos que viam a noite igual ao dia,
Eram mais de dez os cegos em ensurdecedora afonia,
Eram mais de dez cegos em estado de agravamento,
Eram mais de dez cegos a presidir ao julgamento,
Eram mais de dez cegos de cega valia;
Olhavam-me nos olhos, os cegos de viés,
Como se eu não visse o que cada cego não via,
Desprezam o meu olhar da cabeça aos pés,
E era aos pés do olhar que cada cego caía,
Quando sofria sua cegueira um iluminado revés,
Era um cego só, que com os outros cegos se ria,
     Só de cegos a ver o que viam, eram mais de dez!...

Visto pelo olho da friesta cega que espreita,
Escorre uma noite densa sobre o olhar da cegueira,
Uma bandeira arde ao sabor de uma cega elite eleita,
Ondula aos olhos de um cego que pouco a respeita,
    Não vê o cego, as cores que ardem numa fogueira!...
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1 comentário:

  1. Ao coletar a experiência e transformar a realidade, a soma dos versos [“Eram mais de dez cegos...”] confere ao Poema uma visão panorâmica sobre as dificuldades que Portugal atravessa. Dessa forma, “+ de 10 cegos do 10 de Junho” se constitui como um mosaico de visões antidemocráticas. E é essa visão, por se encontrar de fora, que habilita a Poesia a enxergar para além das imagens que se apresentam, o que não se sucederia, se, por ventura, fosse ela também cega ao estatuto de liberdade.

    Uma adição que subtrai os direitos de uma nação e exacerba o sofrimento. A cegueira atual de onde foram exiladas a razão e a clarividência social, mesmo das memórias e das narrativas obliteradas pela ilusão da história, transparece desnudando a máscara política que oculta a miséria que o País se encontra.

    Um Poema, e ao contrário do tema, como primeira leitura, ou impressão, visual, e uma conta sensível, e iluminada. A tinta, destacada no último verso [“Não vê o cego, as cores que ardem numa fogueira!...”] realça a necessidade de se tingir uma nova história, e deixar, por fim, reluzir as cores da bandeira de Portugal que prevalecem sobre a imagem P&B.

    Arte, António Pina!


    Bom fim de semana.

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