domingo, 29 de junho de 2014

Entre a Brisa e os Canaviais


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Não faltaram uma e outra cana,
Nem outras canas verdes e fustigadas,
Com que se deitaram no leito de sua cama,
Cobriram-se com uma brisa mundana,
Que serpenteou entre vergastadas,
Das finas canas desconsoladas,
Pela esperança soberana,
    E pela rama cortadas!...

Escondidas sobre a terra e dobradas pela castigada cerviz,
 Ostentada foi a linda rama beijada por brisas inevitáveis,
E cavando o fundo esquecido do desenterro da raiz,
Esmorece alguma árvore profundamente infeliz,
Vendo os umbráticos frutos pouco saudáveis,
 Só existirem em seus delírios inegáveis,
   Desenterrados em cada cicatriz!...

Deitou-se num sussurro de brisa cortante,
Esperou entre a poesia dos seus canaviais,
Talvez viesse a folha que cortasse seus ais,
A brisa trazia desejos da memória distante,
Sentiu as raízes do seu ser por um instante,
E sentiu que sensação assim já era demais;
Demais, era o beijo arrepiante,
Das canas nas brisas matinais,
Transformadas em vendavais,
   E beijos cortados pelo vento!...

Acordaram as canas por um momento,
Por um fresco momento recordaram-se virginais,
   Como canaviais oferecidos à brisa e levados pelo tempo!...
   
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1 comentário:

  1. Na metáfora do canavial e da brisa, um Poema que nem se consome na sua leitura nem na sua audição. A intimidade de António Pina com a Poesia chega a ser artesanal, e, como todos os Poemas que escreve, os versos parecem ser pintados à mão e delineados à sombra de sua sensibilidade artística. E o lugar de encontro, onde tantas particularidades são agregadas, é também um lugar de anonimato, tanto para quem lê e se identifica com a Poesia, ou com o tema, quanto para quem não se identifica.

    “Entre a Brisa e os Canaviais”, enquanto amor versus sexo, revela o canavial como um leito desconfortável o bastante para abrigar os amantes, e a brisa, a memória, não do que se teve, mas do que se julgou ter. E nesse ponto, a Poesia transcende o hermetismo infértil inicial, à aliança da sexualidade e do erotismo enquanto manifestação da Vida, reunindo tais aspectos na forma de um Poema que exercita o prazer da imaginação na busca de uma compreensão que esteja à altura de seu enunciado.

    A leitura dos implícitos, pela ação da brisa [“Esmorece uma árvore profundamente infeliz,”] rompe com a harmonia da paisagem e insere a ideia de um novo contexto de dinamismo, inquietando as lembranças, ou as memórias dos afetos inexistentes [“Só existirem em seus delírios inegáveis,”].

    E a tela, mais negra que verde, se desvela à manifestação sexual que se sobrepõe ao amor. O êxtase agora é vazio. Ou oco. Sem memória, sem perfume. Sem vida própria. Ambulante. Nômade. Fenece.

    Exceto pela Poesia, eternizada para sempre à memória que encanta, ainda que incômoda, porque move, inconsciente, em busca de uma razão, não que explique ou justifique, mas que se faça plena como resposta, mesmo quando não há perguntas a serem realizadas.

    E depois, a Poesia de António Pina é Arte, manipulada, talvez, mas nunca distorcida da realidade. E viver também inclui em dor, decepção, alguns erros, ou muitos. Mas, sobretudo, em Luz, qualquer que seja o foco.


    Boa semana.

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