sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Atacadores


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Depois do sonho que o atacava,
Abeirava-se da velha cama sonolenta,
E deparava-se com o que sempre sonhava;
Ali estavam eles sobre a bota que descansava,
Estendidos no sono de mais uma volta truculenta,
Mal desatados por mais uma noite de tormenta,
     Nas voltas solitárias que na noite o sobressaltava!...

Sentado à beira do abismo de estrito uso pessoal,
De braços atados pelo nó cego da cegueira da sorte,
Contemplava seus pés de um despido branco forte,   
Pendentes de uma crua indiferença quase vegetal,
A crescer no olhar vazio de um pálido vazio mental,
   Já sem as lembranças vivas da vida nem da morte!...

Escolheu vinte dias em que ficou descalço no frio,
Entrou em dezanove abismos e saiu por cada ilhó,
Passou por todos eles como atacador de ponta só,
Até encontrar seu par atacador em igual desvario,
Uniram-se pelas botas num abraço de amorfo nó,
   Fazendo-se ímpar atacador de fatal nó corredio!...

Haurido pelo olho trespassado dos velhos ilhós,
Debruava buracos abertos ao silêncio das dores,
Cegos nós na garganta estrangulavam-lhe a voz,
Como quem ata olhos de solidão de homens sós,
      Ao silêncio de uma bota desatada por atacadores!...

Vinte ilhós e outros tantos longos dias depois,
Puxou tenazmente as pontas dos fortes atacadores,
Cada um apertou sua bota cheia de vidas anteriores,
 …e partiram os dois!...
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2 comentários:

  1. Imaginação, sensibilidade e propriedade poética fazem de “Atacadores” um poema social onde objetos inanimados ganham vida e sentimentos. O cenário de antíteses que constrói é desolador. As certezas estão fragmentadas, a memória é a geografia de um abismo, em par. E as asas presas por uma corrente é a própria metaforização do voo quanto à incerteza do percurso. Uma visão inusitada de um mundo que estabelece uma relação com a memória do passado escrevendo o presente depositando no futuro a angústia, a preocupação e o abandono. Condenado à solidão, ou à prisão da memória. Ou das lembranças.

    A imagem do anjo, e tão diferente das mulheres que estão habituadas a constar na produção dos wallpapers, nu e acorrentando, antecedendo à última estrofe, que não é de libertação, mas de puxão, ou de um arrancão, desconcerta toda a dinâmica do Poema. Como se a vida, ou algumas vidas, dependessem daquele 'tranco', ou arranque, para se firmar como pessoa, ou humano.

    Mas como dizer isto sem enaltecer que a poesia se superou pela imaginação, dessa vez, (e só dessa vez?! não!).

    Não sei como. Não sei como traduzir o que estou sentindo. Não sei como dizer que a poesia d’Alma não é só Alma, é também corpo, pele e sangue. Mãos. Coração. Pernas e pés. Escrever um poema e comparar a vida e o sofrimento, memória, opressão e liberdade, representando a submissão e a ausência de perspectiva de melhorias à situação existencial, a um cadarço, ou a um simples cadarço, ou "Atacadores", é mais que inovar ou ousar, é apostar na grandeza inquestionável da sua própria Obra.

    E ganhar sempre.

    Mas ainda não sei como dizer isto. Ou não aprendi tudo que deveria. E de repente me sinto tal como aquele anjo, ter asas e não poder voar, e a única diferença é que eu sei onde quero chegar.

    Desta forma, permanece registrado, ainda que num poema, os passos desses desventurados calçados, ou pés, que amarrados, ainda caminham, ou voam, rumo a um futuro duvidoso.


    Bom domingo A.

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  2. Parabéns pela análise!... Não se pedia melhor interpretação!...

    Bom Domingo

    Abraço

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