sábado, 12 de janeiro de 2013

A Balsa dos Pinguços


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Mágoas triunfantes,
Encostadas a uma esquina qualquer,
Inúmeras saídas para o apaziguamento,
Escondidas nos taninos de tintos em mutação,
Um lago alargado de sulfitos mortos na fermentação,
E rosáceas das balsas a bailar com destino incerto,
Mais que certo,
Em cada rosto onde não havia sequer,
A imagem sóbria de uma preocupada mulher,
Nem da vergonha de filhos alheados do pensamento,
Abandonadas às lágrimas desiludidas de seus soluços,
Prostrados aos pés trôpegos do último sacramento,
   À saúde do “que Deus leve” todos os pinguços!...

Mágoas triunfantes,
Mergulham em triplos mortais,
Para copos cheios de tintos dados à sorte,
Copos pagos por outros copos delirantes,
No delírio de muitos copos e tantos mais,
Haviam-se ido copos dados aos pardais,
Passaritos na ilusão de pássaro forte,
Arrastado por suas asas vacilantes,
Para lagos de vinhos abundantes,
     Atravessados por balsas da morte!...

Mágoas triunfantes,
Avinhadas em azeite e alho,
Bebiam da carne em mau estado,
Espremido unto de vício envinagrado,
Dado a engolir com gordurento enxovalho,
Enjoando de indiferença um indiferente vergalho,
Engolido pelas tripas do vómito e orgulho vomitado,
Na deglutição do orgulho atrás do azedo rebuço,
E de sua sóbria auto-estima já muito falho,
   Avivava-se-lhe a mágoa de pinguço!...

Línguas de vinho em carne viva,
Quebravam esquinas que lambiam,
Mortas à sede que da sede bebiam,
Em copos de sua sede inexpressiva,
 Bem no fundo árido de suas agruras,
Tanta era a sede a secar nas securas;
Mulheres distantes,
Divorciadas da culpa solteira,
Casavam as mágoas triunfantes,
Com a viuvez dos ébrios amantes,
   Esses que pagavam a sede do vizinho...
E a travessia nas balsas!...
Na outra margem da bebedeira,
Estremunhado por mais um copinho,
Desembrulhava a língua de costaneira,
E estendia o papel branco no caminho,
De suas canetas permanentes de vinho,
Para o trémulo abaixo-assinado,
Certificado,
De mais uma valente borracheira!...

Dão as balsas tantas voltas,
À volta de mágoas revoltantes,
Afogam-se mágoas revoltas,
Nas reviravoltas,
Das mágoas triunfantes!...
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1 comentário:

  1. Não basta ler. É preciso adentrar o uniVerso do Poema, ser personagem, interagir e descobrir, ou tentar descobrir, a força da criação poética formada a partir da realidade física e encontrar, além da significação, a mensagem ideológica que ele contém.

    Neste curso, ou neste caminho, leio “A Balsa dos Pinguços” como um ‘documento social’, pelas características reais do discurso permeado no pensamento disciplinar, na imaginação estética e no cuidado ético, com o objetivo de provocar sentimentos, ora de revolta ora não, na reflexão que se faz necessária frente ao sofrimento daqueles que vivenciam o alcoolismo, direta ou indiretamente, e o ignoram como um grave problema de saúde pública.

    Por mais ébrio que seja o tema, a poesia é de uma sobriedade espantosa, e d’Alma faz de cada estrofe uma consciência social. Na verdade, a questão da solidão que a bebida provoca, ou do celibato, não deixa de servir de alerta, ou de uma inequívoca tomada de posição sobre uma camada específica da sociedade.

    O balcão, as asas, ou o voo irresponsável, e o preço a pagar: “Mágoas triunfantes, / Encostadas a uma esquina qualquer,”; “Mágoas triunfantes, / Mergulham em triplos mortais,”; “Mágoas triunfantes, / Avinhadas em azeite e alho,”. Assim, ‘afogar a mágoa’ em muitas das possibilidades, opondo-se à satisfação, ou à vitória, do sofrimento pelo abandono, dá à poesia um caráter peculiar de encontrar-se para fora do poema, ou do balcão, ou mesmo da cama de casal, [“Divorciadas da culpa solteira,”], e constrói um mundo de reflexões para além da simples tradução visual das imagens que se desenham à nossa frente, e às costas do outro.

    “E a travessia na balsa!...”. Um mundo sem consolação. E talvez sem culpa, embora haja mais vítimas do que podemos imaginar.

    Com a intenção de despertar o sofrimento, a solidão e a desesperança, mas também a consciência à realidade que alimenta sua existência e sua Arte, d’Alma não poupa a frieza dos versos, e cruel, sentencia: “Afogam-se mágoas revoltas, / Nas reviravoltas, / Das mágoas triunfantes!...”.



    A beleza do Poema está na sutileza como A. conduziu o tema. Sem sensibilidade e sem delicadeza, não seria tão belo. É isso que me fascina na poesia que leio d’Alma.


    Bom fim de semana A.

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