quinta-feira, 24 de maio de 2012

O Piano


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Há Luz dada, pela primeira vez, a pessoas que são imediatamente esmagadas pelo nome, pelo peso infalível das linhagens familiares e sociais!... Como se não bastasse, costuram-lhe umas asas ainda mais pesadas do que o peso de não ter escolha e escondem-lhe as encruzilhadas, a escolha de um caminho e a opção do erro!... A obrigação de ser algo perfeito, sem alternativa, é uma imposição sem condições entre pequenos universos fechados entre si e para sempre gratos… como se cada um seja um elo grato a outros elos que, por sua vez, pagam a gratidão com mais gratidão, sem quebrar a corrente que se aperta por cada nova Alma dada à Luz… sem outra opção nem vocação, talvez, para voar o voo dos progenitores, sempre fartos, leves e felizes, bem aos pés das falésias!...
Há sempre um qualquer Filho da Luz que um dia se quebra da corrente e decide dar asas à Liberdade que nunca conheceu; sobe a pulso e experimenta, pela primeira vez, a dor esforçada dos braços… por cada centímetro conquistado, por cada pena das asas que escolheu!... E chega ao ponto mais alto do que lhe fora negado desde a primeira Luz ao primeiro e único clarão breve do salto!...


O piano desespera,
Obrigado a ser alguém,
Por ser filho de quem era,
Todos o sabiam muito aquém,
Dos plágios que sempre fizera,
Um dia subiu ao alto da Primavera,
Amaldiçoou o pai e o nome da mãe,
Do alto de si amaldiçoou-se também,
E voou para o que de si sempre quisera,
Ao encontro do saber não ter sido ninguém!...

Restou uma imagem sem registo,
Uma fotografia esquecida de tirar,
Já revelada pelo sacrifício previsto,
Dos seus pianos obrigados a tocar!...


E nenhum Piano se calou, nos palcos seguros dos elos protegidos e obrigados a ser alguém, por serem filhos de quem são!...

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5 comentários:

  1. Uma leitura inquietante. Forte. Senti angústia ao ler. Não é fácil lidar com os pesos que os outros nos impõe, com as crenças dos outros, seguir o caminho dos outros, e dói muito ter asas e tê-las costuradas...mas quem tem asa um dia pode voar..romper as costuras.
    Um texto que dá vontade de conversar sobre ele.

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  2. Crônica e poema reúnem-se para reforçar a reflexão e começo restaurando uma frase feita por A. Pina num dos meus últimos comentários: “Por mais complexo que tudo pareça, tudo se resume a uma simplicidade!...”. Meu primeiro movimento diante “O Piano”, então, recuperando sua lição, é subtrair as obviedades e somar o significativo, abstrair a dor e concentrar no resultado final o saldo positivo: o piano, a melodia e a poesia.

    Sensível por excelência, seu poema preconiza sua preocupação com a humanidade, expresso em compaixão e solidariedade. A imagem de um menino apedrejando um piano aparentemente já destruído demonstra sua sutileza lírica: a vida não pode ser capturada, ela é composta pelas pequenas coisas e está no cotidiano, na figura determinada deste menino que apedreja. Não podemos nem tentar reter o tempo, nem aceitar que programem nossa história de vida. Às vezes, mesmo que se quebrem as asas, ou os braços, ou que o voo seja, num sentido inverso, ao precipício, é preciso arriscar. É preciso apedrejar [melodia], ou destruir, de uma vez por todas o passado, ou o estigma, ou mesmo um futuro programado que não corresponda à nossa vontade, ou ao desejo, numa tentativa desesperada de resgatar a própria vida, ou a dignidade, ou a identidade. Um nome ou uma profissão. Preservar o talento: sobreviver.

    E é justo na destruição que a criação se revela como transformadora [poesia].

    E eis-me aqui, buscando e encontrando também meus símbolos na poesia d’Alma. Esta é a grande força de sua poesia, você cria o poema, e excluindo o óbvio, eu o modelo ao meu significado. Comovendo-me, move-me e retira-me daquele lugar de sossego, e sou levada a contemplar algo além, a transcender como espectadora, ou mera admiradora de uma arte que não merece resumir-se a uma palavra escrita “Fim...”.

    Cumprimentos.

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  3. Sem nem sequer acabar de ler o comentário, saltei o texto, parti para outro comentário. Este era meu, é meu e, por pura parvoíce, para ouvir a voz diretamente da fala da escrita... comecei a equacionar as incógnitas, como quem empilha palavras, fazendo um monte de frases. Até entrar numa frase diferente, onde o silêncio se instala e instiga o cérebro a ouvir de dentro do búzio do crânio uma canção adormecida de adormecer a criança desaparecida no adulto enquanto não acorda dando corda aos sapatos de metáforas semelhantes a eles, os sapatos, deixados como sapos para serem beijados como príncipes? Voltando ao principio, vou ler agora. Já deixando, abraço, a_braços!!

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  4. Texto, simplesmente notável. Neste poema, o labirinto não tem muros; pode-se viajar de e para onde se quiser.
    Abraço.

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